Não é correto pensar que sabemos de antemão.
Não somos senhores do nosso futuro. E as vezes, o futuro vem em duas semanas, como aquela sua tia que você não vê há muito tempo e de repente anuncia sua chegada. “Nesse sábado, no outro! Sim, vou de ônibus até Goiânia, depois pego um carro particular.”
Você não a vê já há uns 20 anos. Quando aconteceu, você ainda era um garotinho e sua tia cuidava das filhas ainda adolescentes.
Seus olhos brilham ao ouvir a notícia. Pensa nos momentos incríveis, nos paparicos — memórias de um tempo especial. E então, surgem as expectativas para o reencontro. Mas de repente, você se dá conta que o tempo, esse agente silencioso de transformações, agiu sobre você de forma imperiosa, e sua figura está há anos luz daquela criancinha amável. E a memória da sua tia amada também se transfigura: quem você é hoje não irá agradá-la.
Não saímos ilesos das relações.
Você também conheceu alguém. Uma pessoa legal, mas nada demais. Aproveitam bons momentos, mas você transparece os limites do seu envolvimento e interesse. Há quem diga que é preciso ser aberto e dizer claramente suas intenções e desejos. Não sou totalmente avesso a esse ideal. No entanto, meu caro, você segue sua vida apreciando momentos e compartilhando risadas. É uma pessoa adorável, você insiste, mas nada demais. Seu coração não se anima tanto, mas tudo bem, não é?
Não saímos ilesos das relações.
Você se formou na faculdade e agora tem uma profissão. Pensa em construir um futuro, mas também aproveitar o presente. Sabia que seria difícil, mas pqp, não precisava ser tanto. O que eu preciso para conseguir um lugar ao sol?
Não saímos ilesos das profissões.
Quem sou eu? No que me tornei?, você se pergunta. E então se lembra do trecho de um livro que leu e destacou há um tempo. É Karl Ove Knausgård, em A ilha da infância:
“É claro que eu não me lembro de nada dessa época. É totalmente impossível para mim identificar-me com o bebê de colo que os meus pais fotografaram, na verdade é tão difícil que parece até errado usar a palavra ‘eu’ para falar dele, em cima do trocador, por exemplo, com a pele muito vermelha, os braços e as pernas estendidos e o rosto contorcido em um grito que ninguém mais lembra o que poderia ter ocasionado […] Será que aquela criatura é a mesma que agora está em Malmö escrevendo estas palavras? E será que a criatura que agora está em Malmö escrevendo estas palavras […] há de ser o mesmo velho grisalho e encolhido que daqui a quarenta anos talvez vá estar tremendo e babando em uma casa de repouso no meio das florestas suecas? […] Não é totalmente inacreditável que um único nome possa abranger tudo isso? Que possa abranger o feto no ventre, o bebê de colo no trocador, o homem de quarenta anos atrás do PC, o velho na cadeira, o cadáver no necrotério? Não seria mais natural operar com nomes distintos, uma vez que as identidades e as percepções de si mesmo apresentam diferenças tão profundas? […] Assim o primeiro nome representaria o que há de único em cada idade, o segundo representaria a continuidade, e o sobrenome representaria a família.”
Hemerson Carlos Rocha
Psicólogo - CRP 09/15782
WhatsApp: 62999435583 - https://wa.link/u2re9y
תגובות